domingo, 21 de junho de 2015

Titanic



Eu não consigo viver num estado mediano como a maioria das pessoas faz. Estou sempre ou eufórica, imersa numa delicia absurda de viver ou   introvertida, nadando de braçada na minha própria melancolia, ambas sem motivo aparente, o que arruína o dia- dia e a saúde de qualquer vivente, o corpo nunca sabe como deve se comportar, se contrai e descontrai, se solta ou se prende, minhas costas doem precocemente. Sou um terror pra mim mesma.

Eu ando mergulhando tanto em mim que  temo que um dia, ao mergulhar, eu bata a cabeça no fundo e acabe afogada no meu próprio eu, sem nunca mais voltar a superfície da convivência sadia com outros seres humanos.

Uma coisa interessante dos anos se passarem é que a gente simplesmente consegue,  ou pensa que consegue, controlar as próprias emoções com mais senhorio. Mais nova, eu era também mais magra e tinha menos de mim pra controlar. Todavia não queria, ou não sabia e partia desembestada fazendo bobeira, mas isso era perdoável por que eu fui uma jovem adorável e às jovens adoráveis as besteiras são perdoadas solenemente pelos mais velhos, com um sorriso condescendente “Tão novinha...”. Acontece que até o mais condescendente dos sorrisos se cansa de lhe tolerar quando os anos chegam e você ganha todos os quilos que o mundo perde em dietas da sopa e afins.

O que as pessoas não sabem é que eu engordei para caber mais em mim por que fui crescendo o dentro e esquecendo o fora. Minhas costas cresceram, minha barriga cresceu, meus peitos enormes, minhas coxas roliças, eu vou envelhecendo e comendo o mundo, e por isso não perco peso, mas vou recriando o universo aqui dentro.  E o universo está sempre em expansão.  

Minha mãe fica maluca com isso, por que pessoas gordas são infelizes, de acordo com todo mundo, não só com ela.  Eu deveria perder peso. Mas eu deveria tanta coisa. Eu deveria fazer mestrado, eu deveria fazer teatro, eu deveria ler mais, eu deveria terminar de escrever meus livros, aliás eu deveria parar com tanta coisa que ela não sabe que é melhor o foco ser a gordura.

O mundo é um moinho vai moer seus sonhos mesquinhos. Obrigada por avisar, poeta. Eu  fico por horas rolando na cama de puro recalque. Das coisas que não fiz, dos homens que não tive, dos amigos que me esqueceram. Como se todos os anos fossem um compilado besta de fracassos. Eu sou a única pessoa do mundo que olha pra trás e não vê o passado com nostalgia, por que só lembro das merdas que me disseram, das merdas que me fizeram e das vergonhas que eu mesma me fiz passar. Ou seja, no balaio de gente que eu odeio eu ocupo o primeiro lugar.  

Eu queria muito nadar de volta até a superfície de mim mesma, se é que um dia já fiz isso, e ficar ali boiando, dando bom dia pro porteiro, comprando pão na padaria , indo pagar as contas na lotérica, vendo porta dos fundos e rindo como qualquer pessoa normal faz. Ficar ali na superfície de boa, o nariz para fora de qualquer inquietação interna, respirando cotidiano e falando mal da presidente. Eu gostaria de aceitar tranquila o fato de que fazer uma cirurgia no nariz me tornaria uma moça menos mal diagramada e não ver todo racismo implícito na minha própria opinião. Eu queria não me importar com as igrejas evangélicas tomando o mundo de assalto, levando consigo todo bom senso das pessoas junto com o dizimo. Eu queria nunca ter sabido nada dessas coisas. Mas desde criança eu vou sabendo sem querer, ninguém nunca me perguntou se eu queria ser ignorante de fato, simplesmente foram me dando coisas pra ler e dizendo que assim eu chegaria a algum lugar . O mais longe que eu cheguei foi dentro de mim mesma, e como já disse, isso me deixa atormentada. Eu, se pudesse, escolheria não saber dessas coisas, mas agora é tarde. Nadar na superfície me deixa ainda mais inquieta  e eu sempre acabo batendo num iceberg desavisado e afundando catastroficamente, com musica da Celine Dion tocando ao fundo.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

O Oceano Onde Dorme a Canção



 Vou escrever uma canção para nunca mais falar de você. Nem cantar essa canção, nem murmurar essa canção, nem lembrar dessa canção. Eu vou jogar essa canção da janela e ela vai cair rápido, vai cortar  cèu, despencar no horizonte montanhoso e afundar no oceano que banha a distância dos nossos universos. Um oceano tem muita água. E eu preciso parar de beber.



 Eu sai para comprar cigarros e não deveria ter voltado. Esse lugar é pequeno mas é tão fácil de se perder que todos diriam a principio "Que rapaz  mais burro!” mas no fundo saberiam que voltar para casa às vezes pode demorar mais do que apenas o caminho que se toma todos os dias.
Eu não deveria ter voltado para casa, subido as escadas e ver que ela ainda dormia exausta no sofá. Eu deveria ter ido fumar na varanda ou me escondido no quarto. Eu deveria ter me jogado no rio. Eu deveria ter ido a outra festa. De uma hora pra outra todos os pensamentos se tornaram um labirinto estranho onde eu não sabia quem eu era e as minhas certezas não enchiam nem uma pequena gaveta do que um dia fora um arquivo muito bem organizado de mim mesmo. Eu não me reconhecia e tinha ainda as minhas pernas meio moles, por isso, talvez, tenha voltado pra casa.




Eu vesti o meu casaco xadrês e sai no vento, eu não me lembro de antes ter visto meu corpo pedir descanso daquela forma. "Eu sou um furacão que os outros adoram." Um amigo me disse uma vez. Eu sou um furacão, e quem gosta disso? De que me serviu até hoje ser um furacão ? Tenho mais ferrões do que abelhas ao meu redor.  Eu queria muito acender um cigarro, impossível. Naquela confusão de vento, folhas secas e cabelo eu tentei achar o caminho para casa e fiquei vagando pela cidade. Eu precisava tomar um bom banho e tirar de mim todos os cheiros dos vícios que não salvam a alma de ninguém. Andei mais um pouco até acabar adormecendo à beira do rio. Ninguém viu. Eu dormi  como se estivesse lendo um livro.




As coisas são muito piores quando se é jovem o suficiente para não saber lidar com elas. Ou quando se tem a cabeça lotada de hipocrisias confortáveis. Naquela noite jogaram um espelho diante de mim. E eu vi que não era ninguém. Quando pegar o avião de volta para o colo feliz da minha casa, eu não vou ser mais aquele que me chamam pelo nome. O bom filho, o bom marido, o bom o que? Eu sou bom em quem e quem sou eu? Eu queria que minha cabeça me desse uma resposta e ela fosse facilmente entendida. Eu dormi a tarde toda exausto, na minha própria cama, depois que ela se foi. Eu dormi a tarde toda no meu cobertor quentinho, meu travesseiro cujo cheiro era familiar, mas que merda! Merda de festa, merda de vida. Eu acordo assustado às vezes por que sinto como se houvesse uma boca muito próxima dos meus ouvidos  chamando meu nome, mas não é nenhuma voz conhecida, eu acordo com a visão de duas pernas abertas convidativas e eu não quero, aquilo me deixa enjoado e eu não sei por que, não deveria ser assim, eu gosto de pernas e mulheres convidativas e deveria dar valor a meia dúzia de pernas que se abrem quando eu passo pelas festas, mas ao invés disso eu sento e tento não estar cabisbaixo. As coisas não deveriam ter esse tamanho, deveriam ser menores. Eu deveria ser maior que tudo isso. E não consigo saber nem o tamanho de mim mesmo.




Eu sou um furacão, e via de regra furacões fazem estragos na vida das pessoas. Levam as casas, levam as vidas, as certezas. Um furacão nunca pode ser divertido, por que tira você do seu eixo, está sempre repleto de coisas que não lhe pertencem, passou por dezenas de vidas e carregou consigo coisas que não deveria. Eu cansei de ser um furacão, de tirar as pessoas do chão, de mudar as certezas de lugar por que mesmo que com isso muitas vezes se varra toda hipocrisia para fora, mesmo assim, as pessoas te odeiam e não admitem que o fazem. Tem-se por hábito vigiar furacões e não segui-los. As pessoas me observam por que é divertido. Mas ninguém quer tirar os pés do chão comigo, um furacão nunca é bem vindo.



Eu vou dormir e muitos dias vão se passar e tudo que ela me disse vai fazer cada vez mais sentido e isso é tão terrível quanto se me amputassem um membro. De uma hora para outra talvez eu  me torne o ser humano que eu espero que eu seja.  Ou continue adormecido no colo macio da hipocrisia aos vinte um, dois, três, trinta e cinco ou cinquenta. Eu não quero ver a nudez a qual ela me expôs. Eu queria que as coisas fossem mais simples. E como não posso eu finjo que elas são. 


Eu vou escrever uma canção dessas que ninguém pode tocar e nunca mais ninguém vai falar no seu nome. Eu vou escrever uma canção completa que nenhum instrumento vai tocar, nenhum soprano vai cantar. E ela vai jazer lá embaixo do oceano, coberta de areia e azul. Como quando está amanhecendo e a luz é turva. E nós vamos fingir que essa hora, essa noite, essa vida, jamais aconteceram. As coisas podem ser simples, mas eu não sei (quero) fazer. Dorme em paz.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Uma Crônica Muito Autobiografica


á Deusdite, que me ensinou que dentro é oceano e mergulhar é a solução....




Eu entendo todos os fantasmas perfeitamente. Em vida já não é fácil abandonar o que quer que seja. E quando já não há vida, quando ninguem te ouve, a angustia cresce e te cerca por todos os lados. Não tendo você mais corpo, o que paira é sentimento, que sem boca nem arte, não se expressa. Só vaga.  Às vezes chora na madrugada. Às vezes lança-se contra as paredes da casa. Arrasta grilhões imaginários enchendo de medo os corredores. Mal sabemos.  Eu entendo os fantasmas. Por que não abandonamos nem o que é ruim se o tomamos como nosso. E o ruim fica sendo bom por que é nosso. Não é bom mas possuimos.
Eu fechei os olhos no quarto ainda escuro . A noite dura pouco e o corpo tampouco descansa  nessa época do ano. Puxei o cobertor. Quando deixei uma vida que um dia tivera deixei assuntos não resolvidos em meu encalço e talvez seja essa a razão da persistencia dos meus sonhos. Uma casa, a minha casa, repleta deles perambulando pelos cômodos. Tudo gelado e eu rezando pelos cantos tentando expulsá-los. Minha casa povoada de fantasmas que eu mal poderia caminhar dentro dela sem trombar um baú velho aberto jogado na sala, um livro comido de traça no banheiro, uma foto amarelada sobre a mesa. Eu fechava os olhos ia para minha casa: Lotação: repleta.Todos nós lá dentro. Eu viva. Os outros mal enterrados pelo tempo.
Fechei os olhos e comecei a contar as horas para os primeiros raios de sol começarem a me roubar o descanso pela janela do quarto, eu nunca entenderei como podem a natureza e as pessoas descansarem com noite tão curta aqui em cima. Apenas quatro horas para deitar, pensar sobre o universo, concluir que nada sei, brigar violentamente contra isso e me deixar corroer vagarosamente pela certeza da pequenez por alguns minutos até minhas palpebras pesadas me vencerem finalmente. 
Você sentou na minha frente, embaixo das árvores, na mesa de ferro. Escurecia e chovera há pouco. Tudo umido e azul, algumas luzes do natal passado ainda teimavam em ficar piscando e fazer desenhos estranhos e longinquos nas árvores. Você encostou sua testa na minha e eu pude ver seus olhos turvos frente aos meus, as mãos na mesa de ferro enegrecida pelo tempo. "Você vai me dizer exatamente tudo que voce tem pra dizer!" bradou. Eu não parei para pensar na estranheza do seu ato e acabei te vestindo de uma dignidade que nunca foi tua. Grata pela oportunidade me levantei e gritei todas as palavras ruins que já foram ditas por todas bocas amarguradas que já passaram por esse planeta. As que existem e as que ainda se inventarão. E depois, me sentei, vazia. Não se tratava disso, então? Todas as palavras ruins gritadas aos ventos não resolveram. Eu ainda estava cheia de fantasmas pela minha casa, caminhando de um lado pelo outro, me tirando a paz pelas madrugadas.
Voce não pareceu convencido. De braços dados caminhamos pelo jardim fresco da chuva de há pouco, as folhas escuras, as flores roxas, abri a boca e quis engolir a aura de novidade que tomava aquelas já antigas paragens. Caminhamos pelos arredores da casa antiga. Eu estranhei a passividade com a qual aquela conversa se dava. "Não tinha você um cão de guardas armado até os dentes a me morder os calcanhares caso eu me aproximasse?" Perguntei e você "Não há com o que se preocupar...".  E antes que eu dissesse qualquer coisa voce completou "No final eu só queria te dizer que eu me importo. Eu sei o que se passou com você.  E sei que está tudo bem agora, mas eu entendo. Estou passando pelo mesmo caminho que voce já fez." Voce me ofereceu um café, eu não tomei. Saímos da casa ainda caminhando calmamente, desviamos do penhasco de onde, do outro lado, os conhecidos mestres nos acenavam. Acenamos de volta.
Na curva do caminho, sentada numa flor de lotus, sorria uma moça bonita, me deu um aceno terno, nem de longe parecia a sombra a protagonizar meus pesadelos em tantas noites em que nem precisei dormir para que eles, os pesadelos, viessem me assombrar. "Como foi possivel para voce conseguir fazer isso? Trocar as peças, as pessoas, as vidas, por outras peças, pessoas e vidas assim, impunemente, sem que nenhuma ressalva caísse sobre seus ombros?" Você agora caminhava a minha frente, talvez incapaz de olhar o próprio erro de frente, acelerava o passo "Isso já não tem mais nenhum sentido, não importa mais. As coisas não foram assim e se um dia foram... Bem agora também tenho meus próprios fantasmas." E então eu parei a caminhada. Você foi para algum outro lugar, sumiu, e o jardim se tornou turvo e se tornou claro e ainda mais claro e a luz do sol inundou minhas pálpebras.
Abro os olhos e estou exausta de emoldurar as pessoas da minha biografia em heróis e vilões como num romance de enredo pobre que se compra em banca de jornal. Cansada de subestimar minha audiência com um retrato unilateral das minhas narrativas. É preciso exorcisar, sem gritos histericos de pastor, um por um dos meus demônios pessoais que só ganharam tal alcunha após meu próprio julgamento impetuoso. O presente que os anos trazem é tornar as pessoas mais inteligiveis diante dos olhos. Inclusive eu mesma. E deixar ir.