quarta-feira, 3 de junho de 2015

Uma Crônica Muito Autobiografica


á Deusdite, que me ensinou que dentro é oceano e mergulhar é a solução....




Eu entendo todos os fantasmas perfeitamente. Em vida já não é fácil abandonar o que quer que seja. E quando já não há vida, quando ninguem te ouve, a angustia cresce e te cerca por todos os lados. Não tendo você mais corpo, o que paira é sentimento, que sem boca nem arte, não se expressa. Só vaga.  Às vezes chora na madrugada. Às vezes lança-se contra as paredes da casa. Arrasta grilhões imaginários enchendo de medo os corredores. Mal sabemos.  Eu entendo os fantasmas. Por que não abandonamos nem o que é ruim se o tomamos como nosso. E o ruim fica sendo bom por que é nosso. Não é bom mas possuimos.
Eu fechei os olhos no quarto ainda escuro . A noite dura pouco e o corpo tampouco descansa  nessa época do ano. Puxei o cobertor. Quando deixei uma vida que um dia tivera deixei assuntos não resolvidos em meu encalço e talvez seja essa a razão da persistencia dos meus sonhos. Uma casa, a minha casa, repleta deles perambulando pelos cômodos. Tudo gelado e eu rezando pelos cantos tentando expulsá-los. Minha casa povoada de fantasmas que eu mal poderia caminhar dentro dela sem trombar um baú velho aberto jogado na sala, um livro comido de traça no banheiro, uma foto amarelada sobre a mesa. Eu fechava os olhos ia para minha casa: Lotação: repleta.Todos nós lá dentro. Eu viva. Os outros mal enterrados pelo tempo.
Fechei os olhos e comecei a contar as horas para os primeiros raios de sol começarem a me roubar o descanso pela janela do quarto, eu nunca entenderei como podem a natureza e as pessoas descansarem com noite tão curta aqui em cima. Apenas quatro horas para deitar, pensar sobre o universo, concluir que nada sei, brigar violentamente contra isso e me deixar corroer vagarosamente pela certeza da pequenez por alguns minutos até minhas palpebras pesadas me vencerem finalmente. 
Você sentou na minha frente, embaixo das árvores, na mesa de ferro. Escurecia e chovera há pouco. Tudo umido e azul, algumas luzes do natal passado ainda teimavam em ficar piscando e fazer desenhos estranhos e longinquos nas árvores. Você encostou sua testa na minha e eu pude ver seus olhos turvos frente aos meus, as mãos na mesa de ferro enegrecida pelo tempo. "Você vai me dizer exatamente tudo que voce tem pra dizer!" bradou. Eu não parei para pensar na estranheza do seu ato e acabei te vestindo de uma dignidade que nunca foi tua. Grata pela oportunidade me levantei e gritei todas as palavras ruins que já foram ditas por todas bocas amarguradas que já passaram por esse planeta. As que existem e as que ainda se inventarão. E depois, me sentei, vazia. Não se tratava disso, então? Todas as palavras ruins gritadas aos ventos não resolveram. Eu ainda estava cheia de fantasmas pela minha casa, caminhando de um lado pelo outro, me tirando a paz pelas madrugadas.
Voce não pareceu convencido. De braços dados caminhamos pelo jardim fresco da chuva de há pouco, as folhas escuras, as flores roxas, abri a boca e quis engolir a aura de novidade que tomava aquelas já antigas paragens. Caminhamos pelos arredores da casa antiga. Eu estranhei a passividade com a qual aquela conversa se dava. "Não tinha você um cão de guardas armado até os dentes a me morder os calcanhares caso eu me aproximasse?" Perguntei e você "Não há com o que se preocupar...".  E antes que eu dissesse qualquer coisa voce completou "No final eu só queria te dizer que eu me importo. Eu sei o que se passou com você.  E sei que está tudo bem agora, mas eu entendo. Estou passando pelo mesmo caminho que voce já fez." Voce me ofereceu um café, eu não tomei. Saímos da casa ainda caminhando calmamente, desviamos do penhasco de onde, do outro lado, os conhecidos mestres nos acenavam. Acenamos de volta.
Na curva do caminho, sentada numa flor de lotus, sorria uma moça bonita, me deu um aceno terno, nem de longe parecia a sombra a protagonizar meus pesadelos em tantas noites em que nem precisei dormir para que eles, os pesadelos, viessem me assombrar. "Como foi possivel para voce conseguir fazer isso? Trocar as peças, as pessoas, as vidas, por outras peças, pessoas e vidas assim, impunemente, sem que nenhuma ressalva caísse sobre seus ombros?" Você agora caminhava a minha frente, talvez incapaz de olhar o próprio erro de frente, acelerava o passo "Isso já não tem mais nenhum sentido, não importa mais. As coisas não foram assim e se um dia foram... Bem agora também tenho meus próprios fantasmas." E então eu parei a caminhada. Você foi para algum outro lugar, sumiu, e o jardim se tornou turvo e se tornou claro e ainda mais claro e a luz do sol inundou minhas pálpebras.
Abro os olhos e estou exausta de emoldurar as pessoas da minha biografia em heróis e vilões como num romance de enredo pobre que se compra em banca de jornal. Cansada de subestimar minha audiência com um retrato unilateral das minhas narrativas. É preciso exorcisar, sem gritos histericos de pastor, um por um dos meus demônios pessoais que só ganharam tal alcunha após meu próprio julgamento impetuoso. O presente que os anos trazem é tornar as pessoas mais inteligiveis diante dos olhos. Inclusive eu mesma. E deixar ir.

3 comentários:

Unknown disse...

Lindo, lindo, lindo Dani! Estou comovida pela dedicatória! Gratidão!
Fiz tão pouco por você!
Mas no.pouco tempo que convivemos pude perceber que é uma pessoa intensa e com muito potencial. Desejo sucesso em seus projetos. Abraço querida!

Unknown disse...

Lindo, lindo, lindo Dani! Parabéns escreveu com a alma. Estou comovida pela dedicatória, fiz tão pouco por vc! Gratidão!

Daniele Andrade disse...

Voce fez muito mais do que imaginaVoce é de Deus!!=)