sexta-feira, 19 de junho de 2015

O Oceano Onde Dorme a Canção



 Vou escrever uma canção para nunca mais falar de você. Nem cantar essa canção, nem murmurar essa canção, nem lembrar dessa canção. Eu vou jogar essa canção da janela e ela vai cair rápido, vai cortar  cèu, despencar no horizonte montanhoso e afundar no oceano que banha a distância dos nossos universos. Um oceano tem muita água. E eu preciso parar de beber.



 Eu sai para comprar cigarros e não deveria ter voltado. Esse lugar é pequeno mas é tão fácil de se perder que todos diriam a principio "Que rapaz  mais burro!” mas no fundo saberiam que voltar para casa às vezes pode demorar mais do que apenas o caminho que se toma todos os dias.
Eu não deveria ter voltado para casa, subido as escadas e ver que ela ainda dormia exausta no sofá. Eu deveria ter ido fumar na varanda ou me escondido no quarto. Eu deveria ter me jogado no rio. Eu deveria ter ido a outra festa. De uma hora pra outra todos os pensamentos se tornaram um labirinto estranho onde eu não sabia quem eu era e as minhas certezas não enchiam nem uma pequena gaveta do que um dia fora um arquivo muito bem organizado de mim mesmo. Eu não me reconhecia e tinha ainda as minhas pernas meio moles, por isso, talvez, tenha voltado pra casa.




Eu vesti o meu casaco xadrês e sai no vento, eu não me lembro de antes ter visto meu corpo pedir descanso daquela forma. "Eu sou um furacão que os outros adoram." Um amigo me disse uma vez. Eu sou um furacão, e quem gosta disso? De que me serviu até hoje ser um furacão ? Tenho mais ferrões do que abelhas ao meu redor.  Eu queria muito acender um cigarro, impossível. Naquela confusão de vento, folhas secas e cabelo eu tentei achar o caminho para casa e fiquei vagando pela cidade. Eu precisava tomar um bom banho e tirar de mim todos os cheiros dos vícios que não salvam a alma de ninguém. Andei mais um pouco até acabar adormecendo à beira do rio. Ninguém viu. Eu dormi  como se estivesse lendo um livro.




As coisas são muito piores quando se é jovem o suficiente para não saber lidar com elas. Ou quando se tem a cabeça lotada de hipocrisias confortáveis. Naquela noite jogaram um espelho diante de mim. E eu vi que não era ninguém. Quando pegar o avião de volta para o colo feliz da minha casa, eu não vou ser mais aquele que me chamam pelo nome. O bom filho, o bom marido, o bom o que? Eu sou bom em quem e quem sou eu? Eu queria que minha cabeça me desse uma resposta e ela fosse facilmente entendida. Eu dormi a tarde toda exausto, na minha própria cama, depois que ela se foi. Eu dormi a tarde toda no meu cobertor quentinho, meu travesseiro cujo cheiro era familiar, mas que merda! Merda de festa, merda de vida. Eu acordo assustado às vezes por que sinto como se houvesse uma boca muito próxima dos meus ouvidos  chamando meu nome, mas não é nenhuma voz conhecida, eu acordo com a visão de duas pernas abertas convidativas e eu não quero, aquilo me deixa enjoado e eu não sei por que, não deveria ser assim, eu gosto de pernas e mulheres convidativas e deveria dar valor a meia dúzia de pernas que se abrem quando eu passo pelas festas, mas ao invés disso eu sento e tento não estar cabisbaixo. As coisas não deveriam ter esse tamanho, deveriam ser menores. Eu deveria ser maior que tudo isso. E não consigo saber nem o tamanho de mim mesmo.




Eu sou um furacão, e via de regra furacões fazem estragos na vida das pessoas. Levam as casas, levam as vidas, as certezas. Um furacão nunca pode ser divertido, por que tira você do seu eixo, está sempre repleto de coisas que não lhe pertencem, passou por dezenas de vidas e carregou consigo coisas que não deveria. Eu cansei de ser um furacão, de tirar as pessoas do chão, de mudar as certezas de lugar por que mesmo que com isso muitas vezes se varra toda hipocrisia para fora, mesmo assim, as pessoas te odeiam e não admitem que o fazem. Tem-se por hábito vigiar furacões e não segui-los. As pessoas me observam por que é divertido. Mas ninguém quer tirar os pés do chão comigo, um furacão nunca é bem vindo.



Eu vou dormir e muitos dias vão se passar e tudo que ela me disse vai fazer cada vez mais sentido e isso é tão terrível quanto se me amputassem um membro. De uma hora para outra talvez eu  me torne o ser humano que eu espero que eu seja.  Ou continue adormecido no colo macio da hipocrisia aos vinte um, dois, três, trinta e cinco ou cinquenta. Eu não quero ver a nudez a qual ela me expôs. Eu queria que as coisas fossem mais simples. E como não posso eu finjo que elas são. 


Eu vou escrever uma canção dessas que ninguém pode tocar e nunca mais ninguém vai falar no seu nome. Eu vou escrever uma canção completa que nenhum instrumento vai tocar, nenhum soprano vai cantar. E ela vai jazer lá embaixo do oceano, coberta de areia e azul. Como quando está amanhecendo e a luz é turva. E nós vamos fingir que essa hora, essa noite, essa vida, jamais aconteceram. As coisas podem ser simples, mas eu não sei (quero) fazer. Dorme em paz.

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