Vou escrever uma
canção para nunca mais falar de você. Nem cantar essa canção, nem murmurar essa
canção, nem lembrar dessa canção. Eu vou jogar essa canção da janela e ela vai cair rápido, vai
cortar cèu, despencar no horizonte
montanhoso e afundar no oceano que banha a distância dos nossos
universos. Um oceano tem muita água. E eu preciso parar de beber.
Eu sai para comprar
cigarros e não deveria ter voltado. Esse lugar é pequeno mas é tão fácil de
se perder que todos diriam a principio "Que rapaz
mais burro!” mas no fundo saberiam que voltar para casa às vezes pode
demorar mais do que apenas o caminho que se toma todos os dias.
Eu não deveria ter
voltado para casa, subido as escadas e ver que ela ainda dormia exausta no sofá.
Eu deveria ter ido fumar na varanda ou me escondido no quarto. Eu deveria ter
me jogado no rio. Eu deveria ter ido a outra festa. De uma hora pra outra todos
os pensamentos se tornaram um labirinto estranho onde eu não sabia quem eu era
e as minhas certezas não enchiam nem uma pequena gaveta do que um dia fora um
arquivo muito bem organizado de mim mesmo. Eu não me reconhecia e tinha ainda
as minhas pernas meio moles, por isso, talvez, tenha voltado pra casa.
Eu vesti o meu casaco xadrês e sai no vento, eu não me lembro de antes ter visto meu corpo pedir descanso
daquela forma. "Eu sou um furacão que os outros adoram." Um amigo me disse uma
vez. Eu sou um furacão, e quem gosta disso? De que me serviu até hoje ser um
furacão ? Tenho mais ferrões do que abelhas ao meu redor. Eu queria muito acender um cigarro, impossível. Naquela confusão de vento,
folhas secas e cabelo eu tentei achar o caminho para casa e fiquei vagando pela
cidade. Eu precisava tomar um bom banho e tirar de mim todos os cheiros dos
vícios que não salvam a alma de ninguém. Andei mais um pouco até acabar adormecendo à beira do rio. Ninguém viu. Eu dormi
como se estivesse lendo um livro.
As coisas são muito piores quando se é jovem o suficiente
para não saber lidar com elas. Ou quando se tem a cabeça lotada de hipocrisias
confortáveis. Naquela noite jogaram um espelho diante de mim. E eu vi que
não era ninguém. Quando pegar o avião de volta para o colo feliz da minha casa, eu
não vou ser mais aquele que me chamam pelo nome. O bom filho, o bom marido, o
bom o que? Eu sou bom em quem e quem sou eu? Eu queria que
minha cabeça me desse uma resposta e ela fosse facilmente entendida. Eu dormi a
tarde toda exausto, na minha própria cama, depois que ela se foi. Eu dormi a
tarde toda no meu cobertor quentinho, meu travesseiro cujo cheiro era familiar,
mas que merda! Merda de festa, merda de vida. Eu acordo assustado às vezes por que
sinto como se houvesse uma boca muito próxima dos meus ouvidos chamando meu nome, mas não é nenhuma voz
conhecida, eu acordo com a visão de duas pernas abertas convidativas e eu não
quero, aquilo me deixa enjoado e eu não sei por que, não deveria ser assim, eu
gosto de pernas e mulheres convidativas e deveria dar valor a meia dúzia de
pernas que se abrem quando eu passo pelas festas, mas ao invés disso eu sento e
tento não estar cabisbaixo. As coisas não deveriam ter esse tamanho, deveriam
ser menores. Eu deveria ser maior que tudo isso. E não consigo saber nem o
tamanho de mim mesmo.
Eu sou um furacão, e via de regra furacões fazem estragos na
vida das pessoas. Levam as casas, levam as vidas, as certezas. Um furacão nunca
pode ser divertido, por que tira você do seu eixo, está sempre repleto de coisas
que não lhe pertencem, passou por dezenas de vidas e carregou consigo coisas
que não deveria. Eu cansei de ser um furacão, de tirar as pessoas do chão, de
mudar as certezas de lugar por que mesmo que com isso muitas vezes se varra
toda hipocrisia para fora, mesmo assim, as pessoas te odeiam e não admitem que
o fazem. Tem-se por hábito vigiar furacões e não segui-los. As pessoas me observam por que
é divertido. Mas ninguém quer tirar os pés do chão comigo, um furacão nunca é
bem vindo.
Eu vou dormir e muitos dias vão se passar e tudo que ela me
disse vai fazer cada vez mais sentido e isso é tão terrível quanto se me
amputassem um membro. De uma hora para outra talvez eu me torne o ser humano que eu espero que eu
seja. Ou continue adormecido no colo macio da
hipocrisia aos vinte um, dois, três, trinta e cinco ou cinquenta. Eu não quero
ver a nudez a qual ela me expôs. Eu queria que as coisas fossem mais simples. E
como não posso eu finjo que elas são.
Eu vou escrever uma canção dessas que ninguém
pode tocar e nunca mais ninguém vai falar no seu nome. Eu vou escrever uma
canção completa que nenhum instrumento vai tocar, nenhum soprano vai cantar. E
ela vai jazer lá embaixo do oceano, coberta de areia e azul. Como quando está
amanhecendo e a luz é turva. E nós vamos fingir que essa hora, essa noite, essa
vida, jamais aconteceram. As coisas podem ser simples, mas eu não sei (quero)
fazer. Dorme em paz.
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