segunda-feira, 10 de março de 2014


“Vá se descobrir...Vá crescer, entender e saber... ”

Chegara dois dias antes e mesmo da janela do carro vislumbrou, não sem certo encantamento, a cidade. Era sempre mais bonita de noite. Mas a casa do amigo cheirava passado, por que o charme era só de quem não conhecia as entranhas das vielas geladas, de quem jamais fora pedra, de quem jamais fora barro, de quem jamais fora ouro, veludo, espelhos. O charme era de quem não conhecia nada, o charme já não contava. Era linda a cidade. Ela sabia. Mas a casa do amigo cheirava passado e cigarro mal apagado. As pedras nas janelas já gastas. Muita gente e ninguém. Fugiram todos. Sumido o sal do mundo, nem cor nem cheiro, água morna. "Nem goteiras temos mais. Precisava ir logo embora desse lugar” ele coçou a barba ruiva . Ela sorriu "E eu precisava voltar . Fechar essa porra desse ciclo, inútil, aberto, arreganhado essa ferida de pedra.” “Caralho, você não é fácil. Eu se fosse você tinha ficado lá pelas suas bandas que era melhor. Vê bem, melhor pra você, não pra mim, que eu de te ver estou bem contente. Por que está bem, por que eu também posso ficar. Bem. Mas não aqui." Ela riu e se retirou. Já era tarde. O quarto, a cama, os travesseiros, todos cheirando a mofo, um cheiro agudo. Adormeceu contando os passos das assombrações no corredor.

“Aliviando desespero pra adiar o sofrimento...”

Iam então dois dias que já estava ali, fumavam no átrio de uma igreja vazia, fechada, o barulhos dos ônibus ao longe, o vento cortando a pele. A cidade lá trás escurecia cinzenta. “E se nada acontecer e você ver tudo e todos, e ir a todos os lugares e assim mesmo continuar a mesma e você voltar pra casa como veio?” Uma brasa caiu na manga do suéter fino. Assoprou-a. A lãzinha rósea tinha agora um buraco pequeno, cinzento  “Isso não vai acontecer, que só de estar aqui já foi mudança das grandes, eu volto maior. Enorme.” 
A igreja fora o primeiro lugar vislumbrado quando pisara pela primeira vez as pedras lisas da cidade. E já ia mais tempo do que gostaria de admitir. Todos esses anos e as portas da igreja sempre trancadas. Nunca ninguém ali.

“como se eu fosse nada...”

No outro dia o tempo melhorou, o sol de água morna, estava no átrio da igreja, outra, que jazia esquecida atrás da irmã mais imponente. Dessa vez estava sozinha (o amigo fotografava um grupo de turistas japoneses ao longe, só por diversão). Envolta no burburinho alegre das crianças a empinar suas pipas, havia o tumulo há séculos na porta da igreja, limpou o mato e a poeira vermelha, viu um nome cravado na pedra, um nome e nenhuma lembrança, quem sabe não era ela mesma enterrada ali, num passado ou vida distante, quem diria que não?Andou pouco aquele dia, o folego não permitia estripulia. Quase 30, um maço por dia, nos anos ruins foram mais, agora nem precisava tanto. Na volta, viu os precipícios do caminho, quantos não despencaram aquelas ribanceiras?, chegou na casa, o amigo fazia um café “ A festa é mais tarde” ele ainda disse. Ela tomou banho e foi a festa. As cores, por sua vez,  prefiram ausentar-se. O cheiro de tinta fresca sobre o mofo  não disfarçava a podridão gelada de sempre. Seus próprios olhos eram ausência, constatou. Sem decepções voltou para casa e ao perceber que não tinha mais consigo lembrança alguma, chorou aliviada por duas horas. Estranhou o silencio no corredor. (Assombrações se foram ou apenas dormiram?Já era tarde de qualquer forma.)

“Agora tudo é seu.”

Era de tarde novamente quando pegou o táxi, na porta o amigo despedia-se “Essa cidade é pouco de Deus. Quem sai bem chora a saudade. Quem sai mal lamenta angustia . E quem fica... Bem,eu fiquei. Mas já vou indo também. Encontro você qualquer dia nos meios dos carros e das avenidas. Que a fumaça de óleo queimado queime minha angustia do passado.”
Mal sabia ele que a fumaça a queimar suas angustias era a da querosene. O avião o levou para longe, o táxi a fez voltar pro presente.  O amanhã era bem mais feliz.