quinta-feira, 7 de maio de 2020

Desacorçoada


Uma pessoa desacorçoada deve ser uma pessoa sem curso na vida, como um rio depois da chuva na cabeceira fica cheio e sai arrastando o que vê pela frente. 
Minha avó xingava assim quando estava nervosa eu achava engraçado por que nem parecia uma palavra de verdade, como se ela tivesse inventado aquele jeito de ofender. Mas, olhando bem pra mim agora, a desacorçoada sou eu, vovó.
Eu estou presa aqui dentro comigo mesma. E dentro de mim tem pouco espaço, eu nem me mexo por que é eu dar um passo a frente e tropeço em toda quinquilharia possível. Eu desconfio que o tal arrebatamento já foi.  Deus sabia muito bem o que estava fazendo quando nos trancou dentro de casa sozinhos. O inferno somos nós mesmos, o outro era só uma desculpa.

Muito que bem.

Tendo eu consciência de quão pequeno burguesa é a minha própria solidão, eu tento ser empática com as outras dores do mundo, a falta de comida, de dinheiro e ultimamente a de ar. E quero me sentir finalmente feliz no meu apartamento de chão de madeira e no final das contas acabo me sentindo até pior em continuar jazendo nesse musgo de tristeza  diária, como se eu fosse uma Maria Antonieta do faixa preta. Acabou Rivotril? Pois que comam Prozac.

A gente enjoa mesmo de tudo. Eu que já achei dormir uma ótima alternativa ao caos, e na verdade era mesmo, não consigo pregar as pálpebras. Dormir faz meu corpo ficar dolorido e acordar também não é lá grandes coisas num contexto como esse. Eu tampouco quero morrer. Por que morrer não resolve absolutamente nada. E se dar conta disso é também não ter para onde fugir, então o medo acaba se invertendo e você passa os dias rezando para sobreviver sem saber necessariamente o que isso significa.

Eu sou muito boa em dar vida à paranoias até que elas pareçam completamente plausíveis, quase teses com comprovação cientifica. São monstros domesticados caminhando pela casa, disputando espaço com as minha memórias que também perambulam pelos 45 metros quadrados desse lugar. Meu sofá é como uma foto vitoriana. Eu (viva) no meio e vários (mortos) ao redor.

Eu queria poder escrever sobre as coisas das quais me lembro com a mesma desenvoltura que eu narro minhas agonias e enfim livrar-me delas. Mas todas as minhas memorias parecem bastante pequenas quando colocadas no papel. Eu nasci, fui a escola e depois cresci e fui ao trabalho. Fiquei bêbada no carnaval, briguei com minha família no Natal. Comprei um tapete e coloquei na sala. O titulo do meu livro seria "Escritora de Taubaté". O que faria muito sentido por que eu realmente sou de Taubaté e também não sou uma escritora de verdade. Eu poderia falar sobre minhas projeções, de quando usei minha imaginação poderosa para colocar nas pessoas nobres sentimentos ou mesmo pérfidas intenções. Quando projeções são corretas elas ainda recebem esses nomes ou viram certezas? Uma projeção é sempre uma mentira? Já entendo que de qualquer forma sou sempre culpada pelas minhas. 

Eu tento escapar, mas tem sido tão difícil. Me tire a certeza que eu criei sobre o passado e me sobram pouquíssimos lugares para ir. Pergunte-me sobre o lugar em que eu me escondo e te darei uma data, não uma coordenada geográfica. O que torna as coisas ainda mais complexas por que meu tipo de problema não tem nem nome. Não é possível tratar o que não existe. Remo eu meu barco ruma a cachoeira mais próxima.

  Não há perspectiva que as coisas voltem ao normal tão cedo.  Meu cabelo está grande e sem corte.  As pessoas fazem planos para o depois.Eu faço plano para agora. Vou caminhar da sala até o banheiro e depois voltar e me sentar no sofá. Vou terminar de ler a biografia da rainha Dona Maria I de Portugal.  Justamente aquela que enlouqueceu de ficar encarcerada compulsoriamente após passar por lutos sucessivos. A rainha. Enlouqueceu. Trancada.  Ironias a parte, foi o último livro que comprei antes da quarentena, numa livraria física mesmo, e depois me sentei para tomar um café daqueles que são caros e eu poderia ter feito em casa.
A noite tem chegado cada vez mais cedo por que inverno vem à revelia do que pensam as pandemias, e caminha pelas ruas como metade da população que está negando o óbvio. Enquanto os incautos vão à festas e bebem na ignorância, eu vejo se arrastar o tédio e o fim do mundo. Começou a chover lá fora. Se for o diluvio eu estou bem salva aqui dentro da minha arca.

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