terça-feira, 24 de maio de 2011

La Vie en Rose


                                    
O que sei é que de uma hora para outra passei a admirar nadadores. Pensava que nadar era o dom de voar sem asas. Enfim, tudo muito cor de rosa, eu era um tanto fútil por esses idos. Pretensão minha, eu continuo tão profunda quanto um pires. Só que agora mais velha.
            Havia o Ulisses que sempre nadou muito bem. Competia, eu achava isso incrível. Eu sabia de tudo por que meu irmão também nadava. E também competia, mas isso já não me soava nada maravilhoso. Meu irmão era presença tão marcante que ás vezes eu o confundia com algum móvel da casa. Já Ulisses, bem, esse irradiava energia, era luminosidade pura, cheio de vida, vivesse eu à minha vontade, perambularia o tempo todo atrás dele pelas piscinas da cidade. Ele e meu irmão eram tão amigos que pareciam irmãos.Todavia, se sozinho meu irmão mal se fazia notar, ao lado de Ulisses ele virava novamente mobília ou algo do tipo.         
Eu não costumava ir as competições de meu irmão, aliás nós mal conversávamos, só quando Ulisses estava lá em casa que eu me interessava sobre isso. Ele contava-me, sempre sorrindo, maravilhas sobre as provas. Eu o imaginava  pulando nas piscinas, a água envolvendo seu corpo como um cobertor macio, ele planando leve sob elas e emergindo no final, sendo o campeão. Enquanto isso meu irmão mal abria a boca.
            Um dia, depois de tantas perguntas, Ulisses me convidou para ir a uma competição, disse para minha mãe que ia ser perto de casa,nada que demorasse muito. Mamãe relutou, sempre muito pudica, filha moça não deveria ir ver homens em traje de banho. Mas Ulisses tinha mel em suas palavras, mamãe consentiu, recomendando a meu irmão que ficasse de olho em mim.
 Mal pude me conter quando o domingo amanheceu. Os dias fatídicos sempre amanhecem com o sol meio embaçado, eu só fui perceber isso alguns anos depois quando ousei lembrar-me de tudo novamente. O sol opaco, mas eu radiante, mal me contendo. Da arquibancada cheia de mocinhas empolgadas como eu, vi Ulisses tirar o roupão e fazer o aquecimento.
            Todos em suas raias, frio na barriga, a largada e todos á água, exatamente como eu sonhara, Ulisses em câmera lenta para mim. Foi então que eu vi, na borda da piscina, mãos conhecidas, parecidas com as minhas, mãos de meu irmão, saindo da água antes de Ulisses e de todos os outros nadadores. Ele era o campeão. No público, apenas a minha comemoração. Meu irmão também não era grande presença entre as garotas.
Desci até o pódio e abracei Ulisses. Corpo ainda molhado, exalando um odor de perfume e  água de piscina, meu vestido ficou um pouco úmido. Abracei meu irmão também e pedi para o fotógrafo que estava por ali para nos fotografar. Aconselhei a ele, em segredo, que focalizasse apenas a mim e Ulisses e cortasse meu irmão ao máximo para que a foto fosse só minha e de dele.  A foto foi batida e nós fomos para casa, meu irmão com o troféu de primeiro e Ulisses com a medalha de segundo lugar. Em casa mamãe fez um bolo para comemorar. Comemoramos.
            Me lembro dessa tarde como se fosse um bloco só de tempo, como se tudo tivesse acontecido em pouco mais de dois segundos, até mesmo os detalhes menores não me fogem, mas passam rápidos como uma flecha. Sofá da sala no domingo a tarde, eu e Ulisses. Meu irmão subiu as escadas em direção a seu quarto, nos deixando sozinhos. Ulisses por um instante pareceu preocupado, ele era tão bonito, depois  me disse que eu nem parecia irmã do meu irmão por que era esperta e meio sapeca, disse que gostava disso e disse também que estava feliz em ver meu irmão ganhar por que ele andava triste ultimamente e no fim sugeriu que fossemos ao cinema e eu disse, feliz da vida, que sim, iríamos ao cinema.
                        Então o estampido forte. A casa tremendo. O silêncio estupefato. O grito maior de mamãe. A correria. Meu irmão estendido no chão. A arma em sua mão. Suicídio. Um tiro na própria boca. As pernas bambas, Ulisses me segurando, eu em choque. Mamãe chorando de medo e de dor. Dor pela morte, medo do castigo. Os suicidas e o inferno. Ulisses no telefone. A ambulância.. Horrível, horrível, enfim.            
            Alguns dias depois, o fotografo foi até minha casa, para entregar as fotos daquela última competição. Lá estávamos meu irmão, com apenas um pedaço do ombro e do braço aparecendo na foto, enquanto eu e Ulisses sorriamos inteiros, alegres e alheios.
Rasguei aquela foto e nunca mais quis ver Ulisses.

4 comentários:

PSOL50 disse...

Parabéns Dani!

Igor Damasceno disse...

Tá muito bom! Ce escreve pra caralho, Dani! Sempre me surpreendo com seus textos. Puta que pariu! Foda, foda, foda...

Lígia Santos disse...

Surpreendente e real, porque só damos valor ao "móvel" o momento que perdemos, né...

Lígia Santos disse...

Confesso que chorei aqui