Estava sentada na sala de estar lendo um livro da Clarice Lispector por que se julgava muito intelectual. Absorta, somente percebeu uma outra presença na sala quando a mesma fez barulho nos jornais. Ergueu a cabeça:
- Ah,oi Tio.Meu pai ainda não está em casa.
- A Maria me disse quando cheguei. Eu vou esperá-lo.Ele demora?
-Não sei. Talvez.
Ela seguiu tentando ler, acompanhando os seus passos pela sala, sem querer. Era novo o Tio, mas estava começando a ficar careca igual a São Francisco:
-Senta, Tio.
Ele olhou-a, interrompendo o andar:
- Estou bem, querida, obrigada....E você como vai? Já terminou o colégio?
- Falta pouco. Estou estudando pro vestibular.
- Vai para São Paulo?
- Não sei ainda, Tio... Queria, mas me acho tão criança ainda....
O tio sorriu com o canto da boca. Achava a menina bem crescidinha.
-São Paulo é o centro desse país, seria muito bom pra você....
-A cidade é grande Tio, e eu ainda me assusto com tanta coisa... -ela riu de novo. Olhou para a porta da sala. O pai a qualquer momento romperia ali, para seu horário de almoço.O tio não era assim tão amigo de seu pai. Por isso não frequentava a casa com frequência, mas gozava de certa intimidade na família.
- Tio, como está a tia?
- A Tia?-ele engasgou- Não estamos mais juntos.
- Uma pena, eu gostava dela.
- Não tenho paciência com certas mulheres.
-Ah...- tentou se absorver na leitura novamente. Mas o tio prendia suas pupilas com seu caminhar agitado -Papai pode demorar, você não quer deixar um recado? Parece apressado...
-Não tenho pressa, Lili. -ele sorriu novamente. Estava mais magro? A verdade era que todos sabiam que as mulheres é que não tinham paciência com ele. O Tio era um sujeitinho à toa. -Está lendo o que?
-O Lustre, da Clarice Lispector.
Ele se aproximou para ver a capa:
-Hum...Não tenho lido muito ultimamente...Você vai fazer o que mesmo? Engenharia?
- Educação artística.-Lili riu resignada. Não houvera uma só vez que lhe perguntassem isso que não rissem de sua resposta. O Tio todavia continuou serio.
-Isso é diferente.
-Sim é.
-Fazia tempo que eu não vinha aqui. Esses quadros nas paredes você que pintou?
-Sim.
-São bons. -ele sentou-se ao seu lado. Ela teve vergonha por que estava com as pernas de fora, mas o que poderia fazer? Estava sozinha em casa, tinha que fazer sala para Tio daquele jeito mesmo, era feio deixar as visitas sozinhas na casa das pessoas. Ela descruzou as penas e cruzou novamente do outro lado.
-Essa aliança ai no seu dedo é nova....
-Estou namorando Tio, já faz um mês.
-É você cresceu mesmo...
Lili ignorou o comentário jogando o livro para o lado.
-Não tio, sou criança ainda, não vou nem morar sozinha...
-Será que seu pai ainda demora?
-Demora...-ela disse. Ofegava de leve, tentou disfarçar- Ele sempre demora. O que você tem para tratar com ele é serio, Tio?
- Um pouco, sobre uma viagem de negócios mês que vem.-ele disse olhando para a ponta dos sapatos enquanto apoiava o cotovelo nos joelhos.
-Ah.
-Atrapalhei sua leitura não é? -ele sorriu novamente e ela teve asco daquele sorrisinho. A mão dele tocou de leve seu joelho.
-Não tio. Está tudo bem, leio outra hora. -ela disse com medo de se mexer e perder o contato do joelho com a mão dele.
-Você tem a vida inteira para ler, Lili. Seu namorado não vem te ver hoje??
- Talvez à noite. Ele trabalha muito sabe como é... A gente não se vê com muita frequência. -ela disse.
O silêncio se seguiu por alguns instantes, até que ela mexesse finalmente uma das pernas para o lado, fazendo com que a mão do tio pulasse de seus joelhos para sua coxa:
-Ele não me dá muita atenção.
-Eu posso imaginar... Seu pai demora?
E Lili , que ainda ofegava de leve, puxou-lhe a mão para cima:
-Não Tio. Mas fique sossegado, não é nada demais. A empregada abre a porta e papai sempre grita com ela por alguma coisa, é fácil saber quando tem alguém chegando...
- Você não me viu chegar.
- Estava muito concentrada...
- Então se concentre em mim agora.
Ela afirmou com a cabeça e deixou-se deitar no sofá.
- Está bom assim para você?-ele perguntou.
-Tio, se demorar muito meu pai vai chegar. -ela disse com a voz levemente embriagada.
- Eu prometo ser breve....
-Agradeço...-ela sorriu enquanto permanecia quieta,imóvel,num estranho êxtase.O tio por sua vez parecia afoito e alegre como se tivesse esperado muito tempo por aquilo.
-Desde que fez doze anos,Lili...Você com aquela carinha me chamando de Tio...Irresistível...-ele sussurrou com a boca em seu umbigo.
-Ai tio, que absurdo!Justo você preso por pedofilia...As pessoas na igreja iam ficar chocadas...-ela riu.
- As pessoas da igreja não iam achar nada estranho...-Ele ainda disse antes de ocupar-se dela de tal forma que sua boca já não pôde mais dizer palavra. Lili ainda às vezes abria os olhos, fitava o teto, o lustre da sala pareceu turvo, as unhas roídas afundavam na almofada, Maria fazia o almoço na cozinha, ela não podia expressar-se, olhou para baixo e dali só via a careca iminente no topo daquela cabeça de meia idade. Riu. O tio não era mesmo muito de falar, ocupava-se melhor de outras coisas, o lustre ainda estava turvo, tocou os seios de leve, soltou um gemido grave. Estava feito.
-Eu disse que não ia demorar. -ele levantou-se e se refez. Ela também fez o mesmo ,sentou-se no sofá e continuou sua leitura.Tio sentou-se no sofá a sua frente. Então foi possível ouvir o barulho da porta e uma voz firme gritando:
-Ah Maria traz logo meu café e vê se não demora!-era o pai que, instantes depois, chegou à sala de estar :
-Mas olha quem está ai!Que bons ventos o trazem meu caro?
Tio levantou-se e estendeu a mão para o Pai:
-Vim tratar daquela viagem...
-Lili, minha filha você aqui lendo nem deu atenção ao Tio !-ralhou o pai.
-Desculpe Tio, eu prometo te dar mais atenção da próxima vez...
-Não se preocupe Lili. -Tio sorriu para Lili. E depois se dirigindo ao pai -Não é preciso ralhar com ela.Fui eu quem atrapalhou sua leitura. Lili está uma moça, não é? Como cresceu rápido essa menina....
-É...O tempo voa...-disse o pai- Mas venha ao meu escritório, vamos conversar ..
-Sim vamos...Até mais Lili...
-Até mais tio .-Ela se despediu, e finalmente conseguiu voltar a se concentrar em sua leitura.