Eu não consigo viver
num estado mediano como a maioria das pessoas faz. Estou sempre ou eufórica,
imersa numa delicia absurda de viver ou introvertida, nadando de braçada na minha própria melancolia, ambas sem motivo aparente, o que arruína o dia- dia e a saúde de qualquer
vivente, o corpo nunca sabe como deve se comportar, se contrai e descontrai, se
solta ou se prende, minhas costas doem precocemente. Sou um terror pra mim
mesma.
Eu ando mergulhando
tanto em mim que temo que um dia, ao mergulhar, eu bata a cabeça
no fundo e acabe afogada no meu próprio eu, sem nunca mais voltar a superfície da
convivência sadia com outros seres humanos.
Uma coisa interessante
dos anos se passarem é que a gente simplesmente consegue, ou pensa que consegue, controlar as próprias emoções
com mais senhorio. Mais nova, eu era também mais magra e tinha menos de mim pra
controlar. Todavia não queria, ou não sabia e partia desembestada fazendo
bobeira, mas isso era perdoável por que eu fui uma jovem adorável e às jovens adoráveis
as besteiras são perdoadas solenemente pelos mais velhos, com um sorriso condescendente
“Tão novinha...”. Acontece que até o mais condescendente dos sorrisos se cansa
de lhe tolerar quando os anos chegam e você ganha todos os quilos que o mundo
perde em dietas da sopa e afins.
O que as pessoas não
sabem é que eu engordei para caber mais em mim por que fui crescendo o dentro e
esquecendo o fora. Minhas costas cresceram, minha barriga cresceu, meus peitos
enormes, minhas coxas roliças, eu vou envelhecendo e comendo o mundo, e por
isso não perco peso, mas vou recriando o universo aqui dentro. E o universo está sempre em expansão.
Minha mãe fica maluca
com isso, por que pessoas gordas são infelizes, de acordo com todo mundo, não
só com ela. Eu deveria perder peso. Mas
eu deveria tanta coisa. Eu deveria fazer mestrado, eu deveria fazer teatro, eu
deveria ler mais, eu deveria terminar de escrever meus livros, aliás eu deveria
parar com tanta coisa que ela não sabe que é melhor o foco ser a gordura.
O mundo é um moinho vai
moer seus sonhos mesquinhos. Obrigada por avisar, poeta. Eu fico por horas rolando na cama de puro
recalque. Das coisas que não fiz, dos homens que não tive, dos amigos que me
esqueceram. Como se todos os anos fossem um compilado besta de fracassos. Eu sou
a única pessoa do mundo que olha pra trás e não vê o passado com nostalgia, por
que só lembro das merdas que me disseram, das merdas que me fizeram e das
vergonhas que eu mesma me fiz passar. Ou seja, no balaio de gente que eu odeio
eu ocupo o primeiro lugar.
Eu queria muito nadar
de volta até a superfície de mim mesma, se é que um dia já fiz isso, e ficar
ali boiando, dando bom dia pro porteiro, comprando pão na padaria , indo pagar
as contas na lotérica, vendo porta dos fundos e rindo como qualquer pessoa
normal faz. Ficar ali na superfície de boa, o nariz para fora de qualquer
inquietação interna, respirando cotidiano e falando mal da presidente. Eu
gostaria de aceitar tranquila o fato de que fazer uma cirurgia no nariz me
tornaria uma moça menos mal diagramada e não ver todo racismo implícito na
minha própria opinião. Eu queria não me importar com as igrejas evangélicas
tomando o mundo de assalto, levando consigo todo bom senso das pessoas junto
com o dizimo. Eu queria nunca ter sabido nada dessas coisas. Mas desde criança
eu vou sabendo sem querer, ninguém nunca me perguntou se eu queria ser
ignorante de fato, simplesmente foram me dando coisas pra ler e dizendo que
assim eu chegaria a algum lugar . O mais longe que eu cheguei foi dentro de mim
mesma, e como já disse, isso me deixa
atormentada. Eu, se pudesse, escolheria não saber dessas coisas, mas agora é
tarde. Nadar na superfície me deixa ainda mais inquieta e eu sempre acabo batendo num iceberg
desavisado e afundando catastroficamente, com musica da Celine Dion tocando ao
fundo.